Boletim de Serviço Eletrônico em 11/11/2022
Timbre

Voto nº 8/2021/EC

Processo nº 53500.056388/2017-85

Interessado: Concessionária do Serviço de Telefone Fixo Comutado - STFC

CONSELHEIRO

EMMANOEL CAMPELO DE SOUZA PEREIRA

ASSUNTO

Proposta de Regulamento de Continuidade da Prestação do Serviço Telefônico Fixo Comutado Destinado ao Uso do Público em Geral, em regime público (RCON), e de alteração dos Contratos de Concessão.

EMENTA

ALTERAÇÃO REGULAMENTAR. PROPOSTA DE REGULAMENTO DE CONTINUIDADE DO STFC. ITEM 4 DA AGENDA REGULATÓRIA 2021-2022. CONSULTA PÚBLICA REALIZADA. REGULARIDADE. DIVERGÊNCIAS PONTUAIS À PROPOSTA DO RELATOR. ENTENDIMENTO DE QUE A REVERSÃO DOS BENS AFETOS À CONCESSÃO AFETA A PROPRIEDADE. PELA APROVAÇÃO FINAL DA PROPOSTA DO RELATOR COM AJUSTES.

Aprovação do Regulamento de Continuidade da Prestação do Serviço Telefônico Fixo Comutado Destinado ao Uso do Público em Geral (RCON), que substituirá o Regulamento de Controle de Bens Reversíveis (RCBR), aprovado pela Resolução nº 447, de 19 de outubro de 2006, atualmente em vigor.

Divergência tão somente em relação ao entendimento trazido pelo Conselheiro Relator quanto ao cabimento de reversibilidade apenas sobre a posse dos bens. Concordância com os demais elementos da proposta.

O entendimento de que a reversibilidade se dá sobre a posse dos bens decorre de interpretação equivocada do art. 102 da LGT. Não há menção a "reversão de posse", mas a "transferência de posse".

A exposição de motivos da LGT, embora não tenha poder legiferante, traz esclarecimentos ao propósito da Lei. O referido documento é claro em esclarecer que a reversão se dá com a transferência de propriedade.

O Decreto nº 2.338/1997, que aprovou o Regulamento da Agência, dispõe que o patrimônio da Anatel é composto também pelos bens eventualmente revertidos. Para que componha o patrimônio, pressupõe-se transferência de propriedade.

Todo o ordenamento jurídico e a doutrina pátria são unânimes em definir o instituto da reversibilidade. A interpretação de que a LGT pretendeu tão somente a "reversão de posse" pressupõe: i) o uso inadequado da nomenclatura; ii) a ilegalidade do Decreto nº 2.338/1997; iii) má formulação da exposição de motivos da LGT; e iv) incompatibilidade entre o operacional definido nos contratos de concessão e na Lei. Ademais, cria figura inédita e indefinida, para a qual não existiriam doutrinas, jurisprudências, definições ou procedimentos.

A pretensão de transferência de posse como “direito de uso” deve ser calcada em contrato entre as partes, todavia tal hipótese não está definida no arcabouço aplicável. Contrariamente, há previsão nos contratos de concessão de Termo de Devolução e Reversão de Bens.

Há manifestação da Procuradoria Federal Especializada junto à Anatel no sentido de que a reversão se dá sobre a propriedade. O órgão jurídico dá interpretação ao art. 102, no sentido de que este prevê a transferência automática da posse dos bens até a operacionalização da reversão, a fim de evitar descontinuidades ao serviço.

Pela aprovação final da matéria, nos termos da proposta apresentada pelo Conselheiro Relator, com ressalvas de fundamentação e consequentes ajustes à minuta de Resolução.

REFERÊNCIA

Documento de Encaminhamento da Lei Geral das Telecomunicações, comentando-a ("Exposição de motivos da LGT"), de 10 de dezembro de 1996;

Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997 - Lei Geral de Telecomunicações (LGT);

Lei nº 104.06, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;

Regulamento da Agência Nacional de Telecomunicações, aprovado pelo Decreto nº 2.338, de 7 de outubro de 1997;

Regulamento de Controle de Bens Reversíveis, aprovado pela Resolução nº 447, de 19 de outubro de 2006.

RELATÓRIO

DOS FATOS

Trata a presente matéria de proposta de Regulamento de Continuidade da Prestação do Serviço Telefônico Fixo Comutado Destinado ao Uso do Público em Geral (STFC) em Regime Público, submetida pela área técnica a este colegiado, para aprovação final.

Os autos foram sorteados à relatoria do Conselheiro Carlos Manuel Baigorri, que, nos termos da Análise nº 16/2021/CB (SEI nº 6527145), apresentou a sua proposição ao colegiado na Reunião nº 897, em 25/03/2021.

Considerando o detalhado relato do fatos trazido pelo eminente Relator, abstenho-me de reproduzi-los aqui, passando, então a tratar da divergência que suscito à proposta.

DAS CONSIDERAÇÕES POR PARTE DESTE CONSELHEIRO

Antes de adentrar o mérito, considero importante reconhecer os robustos trabalhos conduzidos pela área técnica e pelo Conselheiro Relator. A proposta traz aprimoramentos e desonerações ao processo de controle dos bens reversíveis, notadamente necessários em função da desatualização da regulamentação, sem renunciar à segurança exigida pelo tema.

Assim, de antemão, expresso concordância quase integral com a proposta, à exceção de um aspecto trazido pelo relator: a divergência entre a reversão de posse, entendida pelo relator, ao invés de reversão de propriedade dos bens, ao final do período de concessão - aspecto central justamente para a segurança pretendida para o endereçamento de questão afeita não só ao interesse dos particulares detentores das atuais concessões do STFC, mas de toda a sociedade brasileira.

DA LITERALIDADE DA LEI

Passando ao mérito, considero importante conceituar os dois elementos citados, a posse e a propriedade. Para tanto, temos que reconhecer que o adequado tratamento dos institutos da posse e da propriedade encontra respaldo no Código Civil de 2002, em seus artigos 1.196 e 1.228:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Por outras palavras, a posse é uma situação de fato, enquanto a propriedade é uma situação de direito. A meu ver, a previsão de uma "reversão de posse", despida de atribuição concomitante ou posterior de propriedade, configuraria uma pretensão de fato futuro, o que parece inadequado aos fins que se pretendem neste regulamento, enquanto a situação de direito, com a reversão de propriedade, parece melhor se amoldar a uma expectativa futura de reversão de bens para garantia da continuidade de um serviço.

Não obstante a essa primeira leitura conceitual, deve-se então ler mais atentamente o que dispõe a LGT sobre o caso. O entendimento de que a reversão se dá somente sobre a posse decorre isolada e exclusivamente do art. 102 da LGT, que assim diz:

Art. 102. A extinção da concessão transmitirá automaticamente à União a posse dos bens reversíveis.

A proposta do Relator sustenta que as concessões do STFC são regidas exclusivamente pela LGT, não se aplicando demais leis gerais tais como de licitações e concessões. Tal entendimento está respaldado no art. 210 da LGT:

Art. 210. As concessões, permissões e autorizações de serviço de telecomunicações e de uso de radiofrequência e as respectivas licitações regem-se exclusivamente por esta Lei, a elas não se aplicando as Leis n° 8.666, de 21 de junho de 1993, n° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, n° 9.074, de 7 de julho de l995, e suas alterações.

Assim, e em apertada síntese, os instrumentos associados à concessão, tal como a reversão, estariam unicamente disciplinados na LGT. E o artigo que traria esse disciplinamento seria o art. 102 supracitado, onde restaria definido o modo como a reversão deveria se dar, na leitura do Relator, pela transferência de posse.

Como fundamentação, o Relator traz ainda as lições de Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara [1], em especial o seguinte excerto:

A introdução da concorrência no setor constituiu outro importante motivo para substituir o tradicional regime patrimonialista. Exigir que o próprio prestador detenha a propriedade de todos os bens seria condicionar a expansão dos serviços a investimentos que poderiam ser evitados com o compartilhamento de bens com outros prestadores.

Ao mesmo tempo que se estava celebrando as concessões do serviço telefônico fixo comutado, esse serviço era totalmente liberado para prestação em regime de ampla competição, por autorizatários. Não fazia sentido, então, que as concessões fossem oneradas com o dever de viabilizar a constituição de um vastíssimo patrimônio próprio, inicialmente de propriedade das concessionárias e depois transferido ao concedente; isso as colocaria em situação de insuportável desvantagem em relação às autorizatárias. À época em que não havia concorrência, era sim possível às concessionárias auferir rendas monopolistas e empregá-las na aquisição de vastas propriedades, transferidas depois ao poder público. Mas agora, com a competição, as concessionárias não teriam como praticar tarifas capazes de, por si, financiar esse patrimônio – e ainda ser competitivas ante os preços dos autorizatários. Em suma: as concessões de telecomunicações que têm de disputar mercado com as autorizações não são mais, como foram as do passado, meios para constituir patrimônio público.

Contudo, vale ressalvar que o objetivo proposto pelos autores difere daquele pretendido pelo Relator. O que propõem no estudo, em leitura contextualizada de toda a obra, não é efetuar a interpretação da Lei quanto à “posse x propriedade” (até porque a palavra “posse” sequer é encontrada no documento), mas avaliar a atualidade do instrumento clássico de reversão frente às características de um setor dinâmico e competitivo. E, nessa linha, concluem que a Lei foi bem-sucedida em não impor um controle rígido e patrimonialista dos bens, permitindo às operadoras determinada liberdade na gestão, trocas e atualizações dos bens, e ainda utilizarem de bens que não necessariamente sejam de sua propriedade. Vejamos:

A escolha dos bens que serão atrelados à prestação do serviço público é decisão da concessionária no exercício de sua liberdade de atuação empresarial, plenamente resguardada pela LGT e pela opção mais flexível assumida pelo contrato. Escolher, por exemplo, se dada estrutura (de equipamentos ou pessoal administrativo) ficará mais bem instalada em um imóvel próprio ou alugado, num endereço ou noutro, são decisões estratégicas de cunho empresarial, que não se sujeitam à avaliação discricionária do poder concedente

Dito isso, o estudo defende que a transferência do direito de uso (dos bens não próprios, mediante sub-rogação de contratos) tem se mostrado como alternativa mais moderna à tradicional reversão da propriedade dos bens. Contudo, o estudo utiliza como premissa o entendimento de que a reversão dos bens próprios se dá, efetivamente, sobre a propriedade:

Em síntese, no regime atual das telecomunicações brasileiras o direito de propriedade sobre os bens do serviço público não é mais elemento essencial para assegurar a continuidade e a estabilidade do setor. Em sua maior parte, os serviços de telecomunicações são livres, prestados em regime privado e com ampla liberdade quanto aos bens. Mais: as concessionárias têm liberdade para contratar e usar bens de terceiros, embora possam, em certos casos, até solicitar medidas compulsórias – seja apenas o uso forçado de rede alheia previsto no art. 155, sejam a servidão e a desapropriação do art. 100. Já o poder público pode, atuando em favor de prestadores, impor a cessão de redes (art. 155), além da servidão e da desapropriação (art. 100); e, atuando diretamente nos serviços públicos, ocupar bens e assumir contratos (art. 117). É um sistema montado para realizar fins públicos com mínima intervenção estatal, que conta com salvaguardas suficientes para, em casos excepcionais, garantir a continuidade.

Assim, resta dúvida se a intenção do Relator foi buscar a interpretação do real objetivo da Lei ou propor um novo entendimento em função das características atuais do setor, desconsiderando o tratamento histórico dado ao tema pela Anatel e pelo Tribunal de Constas da União.

De fato, entendo que a literatura acadêmica produzida deve ser acompanhada pela Agência a fim de que possa fundamentar revisões regulatórias. E o referido estudo traz bastante luz ao tema, na medida em que realiza exame da adequabilidade legal ao setor. Contudo, esses insumos não podem ser utilizados para se alterar a interpretação sobre o que já está escrito, sob pena de comprometer a segurança jurídica em desfavor, repise-se, de interesses da coletividade, tutelados pelo Poder Concedente.

Entendo a intenção de buscar leituras mais liberais, progressistas e inovadoras da Lei, especialmente por estarmos tratando de uma concessão reconhecidamente ultrapassada, que precisa, de fato, ser revista. Mas considero necessário ter cautela com o espírito reformista, pois este pode nos levar, por anseios pessoais, a interpretações equivocadas, assim como a leitura isolada de dispositivos. E tais equívocos, por sua vez, podem gerar futuros imbróglios, conflitos, judicializações e, em último nível, prejuízos ao erário.

Vejo com ainda mais preocupação a interpretação dada ao art. 102, pois este não traz explicitamente o entendimento pretendido. Não há, em qualquer disposição da LGT, definição de que somente se reverteria a posse. Aliás, sequer o art. 102 fala em “reversão de posse”, mas em “transferência automática da posse”, diferentemente do alegado.

Ora, se a hipótese defendida pelo Relator fosse a real intenção da Lei, de modo que a reversão não se sujeitaria ao modelo consolidado, mas a um instituto exclusivo da LGT, é de se acreditar que o legislador teria sido mais claro e objetivo, a fim de evitar interpretações dúbias. É o que ocorre, por exemplo, com os conceitos de continuidade e universalização, que compõem o modelo geral de concessões, mas foram especificamente definidos na LGT:

Art. 79. A Agência regulará as obrigações de universalização e de continuidade atribuídas às prestadoras de serviço no regime público.

§ 1° Obrigações de universalização são as que objetivam possibilitar o acesso de qualquer pessoa ou instituição de interesse público a serviço de telecomunicações, independentemente de sua localização e condição sócio-econômica, bem como as destinadas a permitir a utilização das telecomunicações em serviços essenciais de interesse público.

§ 2° Obrigações de continuidade são as que objetivam possibilitar aos usuários dos serviços sua fruição de forma ininterrupta, sem paralisações injustificadas, devendo os serviços estar à disposição dos usuários, em condições adequadas de uso.

De qualquer forma, a discussão sobre o espírito da lei poderia levar a longos debates, sem chegarmos a um consenso. Ao invés de adotar esse caminho, proponho recorrer à exposição de motivos da LGT, ou “Documento de Encaminhamento da Lei Geral das Telecomunicações, comentando-a”, uma das fontes idôneas para a elucidação de dissensos ou questionamentos interpretativos. A seção II do documento diz o seguinte:

Em se tratando de serviço de interesse coletivo, cuja existência e continuidade a própria União se comprometa a assegurar, os bens que a ele estejam aplicados poderão (e não deverão) ser revertidos ao Poder concedente, para permitir a continuidade do serviço público. Mas nem sempre o princípio da continuidade do serviço público supõe a reversão dos bens que lhe estejam afetados. Quando os bens do concessionário não forem essenciais à sua prestação, quer por obsolescência tecnológica, quer pelo esgotamento de sua própria vida útil, a reversão não deverá ocorrer, não precisando, os bens, ser reintegrados ao patrimônio do poder concedente, ao término da concessão. A não ser, é claro, que por motivos devidamente justificados, reclame o interesse público tal reversão. Daí a facultatividade do instituto, que o Projeto agasalhou, ao deixar que o contrato defina quais são esses bens, visando evitar ônus financeiro desnecessário para o concedente.

(destaque nosso)

Como se vê, o documento fala clara e explicitamente que os bens dispensáveis ao serviço não deverão ser reintegrados ao patrimônio do poder concedente, significando, por óbvio, que os bens indispensáveis devem, sim, ser reintegrados ao patrimônio público.

Esclareço aqui que não pretendo, de forma alguma, conferir ao documento o status de lei. Trata-se de documento expositório das intenções e motivações do autor daquele projeto que veio a dar luz à Lei Geral. Não obstante, possui o condão de explicar os objetivos e intenções do diploma legal, justamente porque a Lei não é documento dissertativo, como o devem ser os documentos que lhe conferem motivação. Ora, afastar a exposição de motivos é o mesmo que fulminar as intenções do legislador e eivar o instrumento do princípio basilar da motivação, deixando o ordenamento à deriva para futuras interpretações conforme conveniências e casuísmos.

Logo, a meu ver, não há dúvida: a lei define que a reversão se dá sobre a propriedade dos bens​.

Destaco ainda que o Decreto nº 2338/1997, que aprovou o Regulamento da Agência, subsequentemente à lei (menos de três meses depois, pelo mesmo Ministério das Comunicações que elaborou a proposta de Lei), além de norma vigente, de obediência imperativa, é outro instrumento idôneo para interpretação da LGT. O normativo, textualmente diz o seguinte:

Art.3º O patrimônio da Agência é constituído:

…..

III - pelos bens que reverterem ao poder concedente em decorrência das outorgas de serviços de telecomunicações;

(destaque nosso)

Pelo normativo, percebe-se claramente que se deu a interpretação de que a Lei prevê a reversão de propriedade, e não de posse.

Lembro, ainda, que a expedição do citado Decreto foi anterior à celebração dos contratos de concessão, de modo que seus termos e condições eram de amplo conhecimento das signatárias dos referidos instrumentos. E, repise-se, permanecem válidos e, portanto, não podem ser ignorados.

Aliás, os próprios contratos de concessão celebrados em 1998 previam, no Capítulo XXII, literalmente, a "transferência dos bens", e não de suas posses. Tais instrumentos serão melhor explorados adiante.

A fim de defender a suposta “reversão de posse”, suscitou-se que o conceito de patrimônio, conforme definição contábil, englobaria não apenas bens, mas também direitos, comportando assim a posse.

Em primeiro lugar, a definição contábil se aplica à ciência denominada contabilidade, não podendo sobrepor as definições legais. E a terminologia “patrimônio” é utilizada amplamente em todo o arcabouço pátrio. De qualquer forma, tem-se que a definição comum engloba, em linhas gerais, bens e direitos; todavia, há equívocos conceituais no entendimento de que a simples posse estaria incluída.

Primeiro porque, como dito no início deste Voto, a posse constitui situação de fato, e não de direito. Logo, se não constitui um direito, não pode compor o patrimônio. Defender que a simples posse deva constar do patrimônio seria o mesmo que reconhecer que uma apropriação indébita deva ser declarada à Receita Federal como “bens e direitos”, ou, da mesma forma, que a posse de um bem público em circunstância de esbulho por particular pudesse obter proteção válida.

Recorrendo novamente aos ensinamentos de Sundfeld e Câmara, citados pelo Relator e reproduzidos aqui, vê-se que a Lei poderia ter utilizado de instrumentos como transferência de direito real de uso ou concessão de uso, caso fosse a intenção. E, assim, poderiam vir a ser declarados como patrimônio. Contudo, tal disposição inexiste e conflita com os contratos de concessão, conforme exposto adiante, de modo que, a única forma de sustentar tal entendimento é supor que o legislador fez uso inadequado das terminologias “reversão” e “posse”, e que a Anatel, desde 1998, vem se utilizando de interpretação errônea na celebração e revisões dos contratos.

Outro ponto sustentado pelo Relator é de que os contratos de concessão preveriam, na Cláusula 20.2, que os bens reversíveis integram o patrimônio das concessionárias, afastando assim o entendimento de que deveriam integrar o patrimônio público. Vejamos:

Cláusula 20.2. A Concessionária se obriga a apresentar trimestralmente à Anatel, a partir do 18º (décimo oitavo) ano de vigência do presente Contrato: I - relação contendo todos os bens pertencentes a seu patrimônio e que sejam indispensáveis à prestação do serviço ora concedido, especialmente aqueles qualificados como bens reversíveis da Prestação do Serviço Telefônico Fixo Comutado na modalidade Local;

(destaque nosso)

Trata-se, todavia, de leitura equivocada, tanto dos contratos quanto da Lei e de sua exposição de motivos. O que os contratos preveem é o envio de relação dos bens reversíveis detidos pelas concessionárias enquanto a concessão estiver em vigor. Já o Decreto 2.338/1997 prevê, no seu já citado art. 3º, que o patrimônio da Agência é composto por bens que porventura vierem a ser revertidos, o que, por óbvio, pressupõe a extinção de contratos. Assim, a própria citação trazida pelo Relator aponta para o fato de que os bens são patrimônio da concessionária enquanto durar a concessão, e passarão ao patrimônio da União após a extinção dos contratos.

Conjugando a Exposição de Motivos da LGT, a literalidade do Decreto nº 2338/1997 e os contratos de concessão, entendo que a tese de reversão de posse não encontra qualquer amparo interpretativo ou legal, e por isso não pode prosperar.

O entendimento de que a reversão se dá com a transmissão da propriedade para o Poder Concedente, independentemente de sua origem, encontra respaldo na doutrina jurídica pátria. Vejamos.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2]:

“Em qualquer dos casos de extinção da concessão (...) é cabível a incorporação, ao poder concedente, dos bens do concessionário necessários ao serviço público (...); é o que se denomina de reversão, a qual encontra fundamento no princípio da continuidade do serviço público”. 

(destaque nosso)

No mesmo sentido, para Alexandre Santos de Aragão[3], a concessão de serviço público vem a ser:

... a delegação contratual e remunerada da execução de serviço público a particular para, por sua conta e risco, explorá-lo de acordo com as disposições contratuais e regulamentares pertinentes, por determinado prazo, findo o qual os bens afetados à prestação do serviço, devidamente amortizados, voltam ou passam a integrar o patrimônio público.

(destaque nosso)

Perceba-se que tanto viriam a este patrimônio bens que: a) dele já fizeram parte no passado; quanto b) bens que deverão passar a integrá-lo porque neles aposta a característica da reversibilidade. Trata-se da interpretação geral que compõe o modelo clássico de reversão, embora a tese trazida pelo Relator utilize o fato de “os bens nunca terem sido públicos” como argumento em favor da “reversão de posse”.

Ora, a LGT trata de serviço público, para o qual a União se compromete a garantir a continuidade por meio da reversão, se necessária. Assim, ainda que fosse a intenção do legislador criar, no caso das telecomunicações, um regime distinto de reversão, deveria se ter, então, explicitamente definindo-a. Mas o art. 102 citado não traz essa condição.

A propósito, o arcabouço legal brasileiro traz outras ferramentas afetas à transferência de direitos. Por isso, não parece fazer sentido que o legislador tenha optado por utilizar a nomenclatura “reversão”, já cunhada no mundo jurídico, quando se pretenderia, na verdade, uma espécie de reintegração de posse, ou ainda a celebração de direito de uso.

A interpretação pela “reversão de posse”, por outro lado, criaria uma figura inédita e indefinida, para a qual não existiriam doutrinas, jurisprudências, definições ou procedimentos. Tal criação, que poderia à primeira vista parecer atraente para a prestação do serviço pelo setor privado, tem um aspecto deletério inclusive sobre o ambiente de investimentos ao impor, a modelos de negócio futuros, um ônus sobre o acervo por tempo e em condições indefinidas.

Mas, ainda sim, para supor que tenha sido essa a intenção do legislador, seria necessário admitir-se uma sequência inexplicável de equívocos e impropriedades: i) a exposição de motivos da LGT necessitaria estar errada; ii) o Decreto nº 2.338/1997 seria ilegal e teria interpretado equivocadamente a Lei; e iii) o legislador teria feito escolhas inadequadas ao utilizar das nomenclatura "reversão" e “posse”, já fortemente cunhadas no mundo jurídico e especialmente nas concessões.

Bem, não vislumbro quaisquer indícios para tais acepções. Até porque, repise-se, o art. 102 sequer fala em "reversão de posse". 

A lição de Floriano de Azevedo Marques Neto [4], é até mais detalhada:

De antemão, sabe-se que o domínio destes bens está condicionado à continuidade da prestação do serviço por seu titular. Extinta a delegação, é dizer, cessada a validade do título autorizador da prestação, o bem não mais pertencerá ao delegatário. Não por punição, mas por terem sido seus custos amortizados ou mesmo por ter sido o bem originalmente de propriedade do poder concedente. Assim será pelo fato de que, no caso dos bens reversíveis, a afetação é predominante sobre a titularidade.

(...)

Na verdade, esses bens, quer tenham sido aportados pelo Estado quando da delegação, quer tenham sido adquiridos pelo delegatário no curso da concessão (estando portanto civilisticamente registrados em seu nome), não se enquadram com facilidade nas categorias básicas tradicionais dos bens até o momento formuladas pela doutrina brasileira (bens públicos versus bens privados).

(...)

Poder-se-ia dizer que, durante a concessão, são propriedades privadas sujeitas a uma série de ônus reais (inalienabilidade, impenhorabilidade e destinação predeterminada) e à condição resolutiva do fim da delegação.

(destaque nosso)

Segundo exposto, a reversão opera como uma condição resolutiva para a propriedade privada nesses casos. Os ônus reais a sujeitam na vigência da concessão (quando a propriedade está com o particular), mas a reversão coloca fim à propriedade com a transferência dos bens ao Poder Concedente ou a quem ele designar.

Do contrário, a "reversão de posse" resultaria em um cenário indefinido e eterno. Nessa situação, os bens revertidos se manteriam sob propriedade das empresas, mas sob posse da União de forma não onerosa (já que a reversão é, em regra, não onerosa) e sem vigência definida, uma vez que não se teriam mais contratos celebrados. Em outras palavras, a União ainda necessitaria controlar as alienações e onerações destes bens, pois colocariam em risco a continuidade do serviço; mas, paradoxalmente, não poderia mais impor tais exigências às proprietárias dos bens, pois não seriam mais concessionárias. Nessa hipótese, a Agência colocar-se-ia em situação de impossibilidade de resguardar a continuidade do serviço, e, portanto, de obedecer à obrigação legal.

Como adendo, lembro que o Relator apontou em sua Análise que "o emprego de conceitos genéricos, apoiados em referenciais doutrinários descontextualizados, não deve se sobrepor à lei"; e justamente com o fito de garantir esse resguardo, apresentei duas bibliografias de estudiosos do setor de telecomunicações (a obra supracitada de Floriano Marques[4] e o estudo de autoria de Sundfeld e Câmara [1], resgatada de sua Análise), ambas corroborando explicitamente o entendimento pela reversão de propriedade. Por outro lado, não identifiquei, nem na Análise, e nem na literatura, qualquer tese pelo entendimento oposto.

Vale dizer que o Relator sustentou que a posse não seria eterna, mas valeria durante a vida útil dos bens. Pois bem, tal premissa parece fazer sentido, pois equipara à própria condição de um bem que tivesse a propriedade revertida, mas não está definida em lugar algum, tratando-se apenas de presunção. Ademais, há bens, tais como terrenos e imóveis, que não chegam ao final de suas vidas úteis, especialmente se sujeitos a melhorias, no caso desses últimos. Nesses casos, haveria de se falar, sim, em posse potencialmente eterna.

Tal solução é incompatível com um modelo clássico de concessões estanques e sucessivas que estava fixado na LGT até a recente alteração pela Lei nº 13.879/2019, que, diga-se, alterou o modelo apenas na medida de permitir adaptações das outorgas, mas não permitiu a subversão da construção clássica, na qual inexiste relação entre concessionários presentes e futuros.

Com isso, questiona-se qual é a real intenção de se transferir somente a posse, e não a propriedade. Se o bem “revertido” permanece sob posse da União até o fim de sua vida útil, qual seria a motivação para a criação de um instituto sui generis de reversão, enquanto o instituto clássico alcança o mesmo fim?

Por fim, registro que tal premissa encontra-se espelhada em manifestação do Tribunal de Contas da União (TCU), nos termos do Acórdão nº 3.311/2015 – TCU – Plenário, tendo o Tribunal, em linha com o racional acima apresentado, utilizado das mesmas citações ao Decreto nº 2.338/1997 e à obra de Floriano Marques[4]. Tal posicionamento não parece ter sido alterado em manifestações subsequentes da Corte de Contas.

Dito isso, volto ao art. 102 da LGT, para melhor explorar o sentido de sua disposição.

Para a interpretação desse artigo, faço uso do entendimento já trazido pela PFE em seu Parecer nº 0842/2017 (SEI nº 2523303), proferido em processo que tratava de Edital para a assunção das obrigações da concessionária SERCOMTEL (53500.084866/2017-47), com o qual concordo integralmente:

“51. Dessa forma, os bens reversíveis são de propriedade da concessionária de serviços públicos de telecomunicações, bem como de suas controladoras, coligadas ou mesmo de terceiros, com posse e propriedade reversíveis ao Poder Público com o término da concessão. [...]

55. De plano, portanto, verifica-se que a extinção do contrato de concessão implicará a transmissão automática da posse dos bens reversíveis ao Poder Concedente. A transmissão da posse abrangerá toda a universalidade de fato dos bens reversíveis, sendo que a Agência poderá avaliar se existem bens que não deverão ser revertidos, tais como os bens inservíveis à concessão. [...]

58. Nesse aspecto, é relevante destacar que a reversão dos bens é um efeito decorrente da extinção da concessão, cabendo à Agência apenas declarar por meio de um ato administrativo que deverá ser acompanhado de um Termo de Reversão de Bens, consoante previsto no contrato.

59. Importante destacar, no ponto, que não há dúvidas no sentido de que a propriedade dos bens reverterá ao Poder Concedente. O Decreto nº 2.338, de 07 de outubro de 1997, que aprovou o Regulamento da Agência Nacional de Telecomunicações é expresso ao estabelecer que o patrimônio da Agência é constituído também pelos bens que forem revertidos ao Poder Público em razão das concessões de serviços de telecomunicações [...].”:

(destaque nosso)

Como se vê, a sistemática do art. 102 prevê que, ao final da concessão, a posse dos bens é transferida, automaticamente, à União. Essa é a intenção do dispositivo: prever a transferência da posse automática e imediatamente, para que então sejam devidamente avaliados os bens que serão efetivamente revertidos, bem como apuradas as devidas indenizações. Daí o motivo de o artigo falar em “transferência automática da posse”, e não em “reversão da posse”, como tem sido dito em algumas ocasiões.

A intenção do dispositivo é justamente garantir a continuidade do serviço: caso não houvesse essa previsão, as discussões sobre reversibilidade e indenizações ao final da concessão poderiam se estender e comprometer a prestação dos serviços, vez que a empresa não mais seria concessionária, e a União não poderia se utilizar dos bens. Assim, garante-se à União a possibilidade de emprego dos bens até que a reversão seja efetivamente concluída. Tal sistemática foi, inclusive, mais bem especificada no Capítulo XXII dos contratos de concessão, que preveem a efetiva reversão após 180 (cento e oitenta) dias após as suas extinções.

Ora, eis que a interpretação pela "reversão de posse" gera ainda outro conflito. O citado Capítulo dos contratos de concessão disciplina o regime de reversão dos bens, prevendo-se a vistoria, em até 180 (cento e oitenta) dias após a extinção, dos bens que deverão ser revertidos, lavrando-se ao final Termo de Devolução e Reversão de Bens.

A primeira questão que chama a atenção é o nome escolhido. Fosse somente a "reversão de posse", o Termo possivelmente seria denominado "Termo de Devolução", ou, ainda, "Termo de Reversão". Mas a escolha dos nomes "devolução" e "reversão" indicam exatamente a transferência da posse e, de forma subsequente,  da propriedade.

Para além da questão de nomenclatura, essa sistemática criaria um conflito entre Lei e contratos. A Lei fala em transferência automática ao final da concessão, enquanto os contratos preveem a vistoria e Termo em 180 dias. Supondo que se tratem da mesma coisa (ou seja, a transferência de posse e a reversão sejam o mesmo), os contratos de concessão parecem contrariar a Lei. Não parece ser possível “transferir automaticamente” (conforme art. 102 da LGT), enquanto os contratos imponham um prazo de 180 dias e efetivação somente mediante lavratura de Termo.

Do ponto de vista formal, há ainda outra grande impropriedade. Como defendido anteriormente, caso não fosse a intenção do legislador transferir a propriedade, deveria se prever alguma forma de transferência do direito de uso, que se dá, conforme toda a legislação vigente, mediante contrato. Só assim poderia se considerar os bens “revertidos” como patrimônio da União. Nesse caso, o contrato seria a efetivação dessa condição, onde estariam estabelecidos os prazos e regras aplicáveis, tais como hipóteses de devoluções, alienações, substituições, formas de resolução de conflitos e outros. Mas o Termo de Devolução e Reversão não possui esse condão. Assim, a transferência da posse sem contrato colocaria os bens em uma espécie de limbo regulatório eterno, sem condições conhecidas e sem formalização de direitos.

Mas o mais grave, a meu ver, é o risco que se impõe à continuidade do serviço. Conforme expus acima, entendo que a transferência imediata da posse se dá para evitar uma lacuna de tempo até a celebração do Termo, que deverá ocorrer em 180 dias. Todavia, o entendimento contrário impõe que a posse somente seria transferida após 180 dias, deixando esse período sem qualquer prestador, seja concessionário ou o próprio Estado.

Ainda sobre os contratos de concessão, estes preveem a reversão de bens próprios e a sub-rogação à União de bens contratados pelas concessionárias, indicando, portanto, a diferença de regime e controle de ambos. Assim, caso se pretendesse a "reversão da posse", deveria se prever a sub-rogação de todos os bens, próprios ou não, o que poderia inclusive mitigar a inadequabilidade do Termo de Reversão, pois a sub-rogação pressupõe um contrato.

Importa ainda destacar o processo no qual foi proferido o Parecer acima citado. Trata-se de processo para licitação da concessão na área da prestadora Sercomtel, em função da identificada possibilidade de caducidade da outorga. Na ocasião, o referido edital previa a transferência da posse a um novo concessionário vencedor do certame.

Todavia, contrariamente ao alegado, vê-se que essa escolha não se deu sob interpretação de que a reversão afeta somente a posse. De maneira contrária, considerou-se ainda devida a reversão da propriedade dos bens à União, e tal fato está explicitamente citado nos autos, conforme trecho do Parecer já reproduzido; todavia, considerando as peculiaridades do fato e o curto prazo de vigência de eventual novo contrato, optou-se por somente vincular a posse a essa licitação, deixando a reversão propriamente dita para 2025, juntamente com as demais concessões. Do contrário, seria necessário realizar a reversão imediata dos bens da concessionária (respeitado o prazo de 180 dias), para então licitá-los novamente em novo contrato com vigência até 2025, e então mais uma vez revertê-los à União. Por óbvio, essa sistemática se mostraria, se não impossível, extremamente custosa.

A esse respeito, reproduzo o entendimento apresentado pela Procuradoria no já citado Parecer:

77. No ponto, cumpre destacar que embora o art. 102 da LGT utilize o termo "posse", conforme já salientado por esta Procuradoria no Parecer acima mencionado (Parecer nº 00842/2017/ PFEANATEL/PGF/AGU), tanto a posse quanto a propriedade dos bens da concessionária de serviços públicos de telecomunicações são revertidas ao poder concedente no término da concessão. A transmissão da posse é automática e a transmissão da propriedade é feita após os levantamentos, avaliações e liquidações necessárias.

78. De qualquer sorte, repita-se, dadas as peculiaridades do presente certame, entende-se razoável e adequada a proposta da área técnica de transferir apenas a posse de tais bens.

(destaque nosso)

Merece atenção ainda o ajuste feito à minuta de Edital, por sugestão da PFE, para que se substituísse “direito de uso” por “posse”, a fim de guardar relação com as definições constantes da Lei.

Eis que a proposta foi aprovada em versão final nesses termos pelo colegiado.

DA OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E AO ATO JURÍDICO PERFEITO

Conforme aludido anteriormente, estamos claramente diante de uma ofensa ao Princípio da Legalidade, no momento em que a proposta do Relator contraria expressa e inquestionável a disposição dos arts. 102, da LGT, e 3º, III, do Decreto nº 2.338/1997.

Diante desse cenário, entendo pertinentes as lições de Hely Lopes Meirelles[5] ao afirmar que:

[...] a eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o administrador público significa ‘deve fazer assim’”.

Segundo José Afonso da Silva, “Este é agora um princípio estabelecido na Constituição, de modo expresso no art. 37, segundo o qual ‘a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”.[6]

De forma contundente, o célebre administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que o Princípio da Legalidade é “[...] a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei.” [7]

4.13. Por fim, conclui o professor Celso Antônio Bandeira de Mello que:

[...] o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro. [8]

Feitas estas digressões, podemos concluir que a Administração Pública, além de não poder atuar contra legem ou praeter legem, só pode agir secundum legem. E é exatamente a hipótese aventada neste voto, que tem como escopo reposicionar a o entendimento do Relator, para que o Egrégio Conselho Diretor desta Agência permaneça nos trilhos da lei, no caminho do princípio da legalidade.

Não apenas isso. Mas os Contratos do Concessão mencionados anteriormente, consistem em verdadeiro ato jurídico perfeito, bastando, para assim ser considerado, estar consumado, como ocorre no presente caso.

Nesse ponto, aliás, cabe registrar que o respeito ao ato jurídico perfeito se traduz em verdadeira garantia constitucional, tendo a Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XXXVI, pontuado que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. É o que se convencionou denominar de princípio da não retroatividade, indicando a Constituição a necessidade de se resguardar as situações definitivamente consolidadas, privilegiando a segurança jurídica e assegurando, assim, o respeito aos contratos.

Diante do exposto, não entendo ser possível a prevalência do voto do Relator, data maxima venia, por ofensa ao Princípio da Legalidade e ao Ato Jurídico Perfeito,  consubstanciado nos contratos de concessão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ademais, não se pode deixar de mencionar que um debate tão complexo e relevante, como aquele que aqui se faz, não se verificou no âmbito da Consulta Pública realizada nos autos. Isto porque ao tempo de tal etapa processual, locus para a participação da sociedade, com transparência, a proposta submetida ao público não oferecia disposições que lhes permitisse captar que a proposta normativa em debate poderia futuramente contemplar decisão com tais impactos.

É importante salientar, a título de esclarecimento, que o debate levantado pelo presente Voto não se confunde com outro que, por vários anos caracterizou as discussões sobre a temática e que versava sobre o critério de definição dos bens reversíveis, em correntes grosso modo identificadas como “patrimonial” ou “funcional”. Ali se tratava de fixar o critério de identificação para a seleção de bens – dentro de um acervo maior – que estariam passíveis a sofrer reversão, e por isso a serem submetidos a determinadas regras rígidas de acompanhamento. Tal entendimento foi também sustentado pelos eminentes autores Sundfeld e Câmara, ao defenderem que a LGT optou pela via funcional, na medida em que conferiu às concessionárias a gestão dos bens conforme seus interesses comerciais, somente cabendo à Administração avaliar o acervo ao final da concessão para então reverter a propriedade de bens, caso necessário para a continuidade do serviço.

Desta feita, está a se tratar do critério de operacionalização da reversão, de seus efeitos; passo posterior ao da identificação dos bens passíveis de sofrê-la.

O posicionamento adotado no presente Voto por certo deve se refletir sobre a proposta regulamentar, no seguinte:

DE:

Art. 26. Os procedimentos operacionais para reversão da posse, nos termos do art. 102 da Lei nº 9.472 de 16 de julho de 1997, de Bens Reversíveis e o uso de bens compartilhados serão estabelecidos em Manual Operacional definido pela Superintendência da Anatel responsável pelo acompanhamento e controle de Bens Reversíveis, observado o disposto nos contratos de concessão, devendo conter no mínimo:

PARA:

Art. 26. Os procedimentos operacionais para reversão da propriedade e da posse, nos termos do art. 102 da Lei nº 9.472 de 16 de julho de 1997, de Bens Reversíveis e o uso de bens compartilhados serão estabelecidos em Manual Operacional definido pela Superintendência da Anatel responsável pelo acompanhamento e controle de Bens Reversíveis, observado o disposto nos contratos de concessão, devendo conter no mínimo:

Esta perspectiva também afeta o regime proposto para bens compartilhados, em relação aos quais a Minuta de Regulamento do Relator prevê manutenção de propriedade com as atuais concessionárias mesmo após a extinção das concessões, com a cessão da posse às eventuais futuras concessionárias.

Ao ter criado um modelo clássico, e sem exceções legais expressas, o Legislador não admitiu que a reversão pudesse afetar apenas parte do acervo dos bens reversíveis. Mais ainda: por certo que não se abriga ao desenho legal solução em que a continuidade do serviço ficasse atrelada a uma cadeia infinita de cessões subsequentes de posse à União e aos eventuais futuros concessionários.

Assim, sugere-se a alteração das disposições a esse respeito com a exclusão do seguinte dispositivo da Minuta:

Art. 25. Ao término dos contratos de concessão ou termos de permissão, será garantida a cessão de direito de uso dos bens de uso compartilhado em condições econômicas justas e razoáveis, caso o Poder Concedente ou a empresa que sucederá a Prestadora queiram fazer uso de tais bens para manter a continuidade da prestação do STFC em regime público.

Logo, permanecem as disposições para aplicação plena das regras do Regulamento aos bens compartilhados (art. 23) e a opção de identificação e cômputo da extensão do compartilhamento para o final do contrato de concessão (art. 24).

Por último, não obstante à demonstração de que a Lei não comporta o entendimento de reversão de posse, reitero que essa figura não encontra qualquer respaldo legal, deixando diversas lacunas legais, técnicas e operacionais ao processo, o que geram, por sua vez, falhas e conflitos, dentre os quais listo alguns:

Na hipótese de a União optar por manter o STFC em regime público após o final das concessões, os bens continuarão sendo indispensáveis. Logo, alienações e onerações poderão comprometer o serviço. Nesse caso, ou se admitiria riscos ao serviço (descumprindo o papel legal de garantia da continuidade) ou se imporia ônus indireto,  por prazo indefinido e não previsto legalmente às empresas;

Tanto a Lei quanto os contratos de concessão preveem a indenização dos bens pelas parcelas não amortizadas. Havendo a transferência somente da posse, questiona-se: qual seria o sentido de se indenizar tais bens? 

Ainda em relação às indenizações, suponha-se que determinado bem tenha sido revertido (somente posse) e objeto de ressarcimento. Caso, pouco depois, aquele bem deixe de ser necessário ao serviço, a União incorrerá em prejuízo, pois devolverá a posse sem poder requisitar a devolução da indenização, ou manterá a posse de bem inservível, potencialmente ad aeternum;

O resultado da reversão seria um cenário inconclusivo e sem prazo para solução. A União ganharia um direito eterno de posse dos bens privados (em regra, de forma não onerosa), e os bens afetados estariam sob tal regime de dualidade até o final de suas vidas úteis (no caso de terrenos, por exemplo, essa condição perduraria eternamente);

Caso a União opte por licitar novas concessões, será necessária uma espécie de sub-rogação da posse a novas empresas, podendo criar ciclos infindáveis de cessões de posse, e sob regime de total instabilidade, dada a inexistência de instrumentos para que a União possa sub-rogar bens para os quais sequer detenha contrato de direito de uso;

Tal entendimento implica na suposição de ilegalidade do Decreto nº 2.338/1997. Para além da competência para questioná-lo, o Decreto está em vigor e vem sendo observado pela Agência há quase 24 (vinte e quatro) anos, sem que se tenham surgido questionamentos neste período;

Historicamente, não se suscitava o entendimento de reversão somente da posse, nem mesmo pelas concessionárias. Tal inovação sem o devido debate com a sociedade, já que a tese defendida pelo Relator não foi submetida à consulta pública, poderia gerar repercussões e conflitos com órgãos de controle, especialmente pela criação de um instrumento que difere completamente das demais concessões, sem que a Lei tenha, contudo, explicitamente o definido; e

Por fim, a reversão da posse resultaria em obscuridades ao cálculo do saldo da adaptação. A precificação do direito à propriedade é facilmente mensurável, ao passo que a precificação da posse (especialmente nas condições postas, sem formalização das regras aplicáveis e por prazo indefinido e potencialmente eterno, com a possibilidade de eventualmente ser desfeita caso a União não mais necessite do bem) é incerta e pode sofrer distorções, levando até mesmo ao dispêndio injustificado de recursos públicos.

 


 

[1] SUNDFELD, Carlos Ari. CÂMARA, Jacintho Arruda. Bens reversíveis nas concessões públicas: a inviabilidade de uma teoria geral. Revista da Faculdade de Direito - UFPR. 2016.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[3] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 542.

[4] NETO, Floriano de Azevedo Marques. Bens Públicos: Função Social e exploração econômica: O regime jurídico das utilidades públicas. 1ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros. 2008. p. 89.

[6] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8ª ed. São Paulo: Malheiros. 2012, p. 87.

[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros. 2012, p. 101.

[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros. 2012, p. 104.

CONCLUSÃO

Considerando o exposto, voto por acompanhar a proposta trazida pelo Conselheiro Relator, nos termos de sua Análise nº 16/2021/CB (SEI nº 6527145) e da Minuta de Resolução SEI nº 6545787, à exceção da ressalva de fundamentação aqui apresentada, bem como com os ajustes pontuais aqui propostos aos arts. 25 e 26 da citada minuta de Resolução.


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Documento assinado eletronicamente por Emmanoel Campelo de Souza Pereira, Conselheiro, em 07/04/2021, às 20:13, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Referência: Processo nº 53500.056388/2017-85 SEI nº 6704774