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Informe nº 29/2020/PRRE/SPR

PROCESSO Nº 01250.009444/2020-83

INTERESSADO: MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÕES

ASSUNTO

Trata-se de resposta por parte das Superintendências de Planejamento e Regulamentação (SPR) e de Competição (SCP) ao Memorando nº 165/2020/GPR, o qual solicita posicionamento frente ao Decreto nº 2.617, de 5 de junho de 1998, que dispõe sobre a composição do capital de empresas prestadoras de serviços de telecomunicações.

REFERÊNCIAS

Decreto-Lei 9.025, de 27 de fevereiro de 1946;

Decreto nº 30.363, de 3 de janeiro de 1952;

Lei 1.807, de 7 de janeiro de 1953;

Instrução da Sumoc nº 113, de 17 de janeiro de 1955;

Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962;

Lei nº 4.390, de 29 de agosto de 1964; 

Decreto nº 55.762, de 17 de fevereiro de 1965;

Lei 6.404/76, de 15 de dezembro de 1976;

Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986;

Constituição Federal de 1988;

Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997 - Lei Geral de Telecomunicações (LGT);

Decreto nº 2.617, de 5 de junho de 1998;

Resolução nº 65, de 29 de outubro de 1998, da Anatel;

Resolução nº 101, de 4 de fevereiro de 1999, da Anatel;

Circular nº 3.491/2010, do Banco Central do Brasil;

Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017;

Lei nº 13.842, de 17 de junho de 2019;

Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019.

ANÁLISE

Introdução

Este informe tem por objetivo responder ao Memorando nº 165/2020/GPR, tecendo posicionamento das Superintendências de Planejamento e Regulamentação (SPR) e de Competição (SCP) frente ao Decreto nº 2.617, de 5 de junho de 1998.

Primeiramente, destaca-se que referido Decreto regulamenta o disposto no parágrafo único do art. 18 da Lei Geral de Telecomunicações, o qual faculta ao Poder Executivo limitar a participação estrangeira no capital de prestadora de serviços de telecomunicações.

Art. 18. Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto:

(...)

Parágrafo único. O Poder Executivo, levando em conta os interesses do País no contexto de suas relações com os demais países, poderá estabelecer limites à participação estrangeira no capital de prestadora de serviços de telecomunicações.

O Decreto nº 2.617, de 5 de junho de 1998, cumpre este papel, de dispor sobre a composição do capital de empresas prestadoras de serviços de telecomunicações. Ele possui quatro artigos, copiados abaixo:

Art 1º As concessões, permissões e autorizações para exploração de serviços de telecomunicações de interesse coletivo poderão ser outorgadas ou expedidas somente a empresas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, em que a maioria das cotas ou ações com direito a voto pertença a pessoas naturais residentes no Brasil ou a empresas constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no País.

Art 2º As autorizações para exploração de serviços de telecomunicações de interesse restrito poderão ser expedidas para empresas constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no País e para outras entidades ou pessoas naturais estabelecidas ou residentes no Brasil.

Art 3º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Art 4º Revoga-se o Decreto nº 2.591, de 15 de maio de 1.998.

A normatização presente no art. 1º determina que concessões, permissões e autorizações para exploração de serviços de telecomunicações de interesse coletivo deverão respeitar aos critérios de: (i) constituição de empresa sob as leis brasileiras; (ii) posse de sede e administração no País; e (iii) composição de capital regulamentada.

Da constituição segundo as leis brasileiras, com sede e administração no País

O art. 86 da LGT dispõe que “a concessão somente poderá ser outorgada a empresa constituída segundo as leis brasileiras, com sede e administração no País, criada para explorar exclusivamente serviços de telecomunicações.” (destaques nossos)

Essa exigência também se aplica aos serviços prestados em regime privado, tal como se observa no art. 133 da LGT:

Art. 133. São condições subjetivas para obtenção de autorização de serviço de interesse coletivo pela empresa:

I - estar constituída segundo as leis brasileiras, com sede e administração no País; (destaques nossos)

Ademais, do ponto de vista regulamentar, de acordo com o art. 47 do Regulamento de Licitação para Concessão, Permissão e Autorização de Serviço de Telecomunicações e de Uso de Radiofrequência, aprovado pela Resolução nº 65, de 29 de outubro de 1998, “poderão participar da licitação as empresas constituídas segundo as leis brasileiras, com sede e administração no país, ou aquelas que, não atendendo essas condições, comprometam-se, através de declaração por escrito, a adaptar-se ou constituir empresa com as características adequadas, com observância das exigências previstas no instrumento convocatório.”

Por fim, no que tange à execução de serviço de telecomunicações via satélite, os mesmos critérios são exigidos, de acordo com a própria LGT:

Art. 171. Para a execução de serviço de telecomunicações via satélite regulado por esta Lei, deverá ser dada preferência ao emprego de satélite brasileiro, quando este propiciar condições equivalentes às de terceiros.

§ 1° O emprego de satélite estrangeiro somente será admitido quando sua contratação for feita com empresa constituída segundo as leis brasileiras e com sede e administração no País, na condição de representante legal do operador estrangeiro. (destaques nossos)

Portanto, os critérios de constituição de empresa sob as leis brasileiras e posse de sede e administração no País já estão determinados tanto no arcabouço legal, pela LGT, quanto no infralegal, por meio do ato normativo acima mencionado, prescindindo do que consta no Decreto nº 2.617.

Da composição de capital estrangeiro

Quanto à restrição em composição de capital, presente no art. 1º, a qual se dá por meio do trecho “em que a maioria das cotas ou ações com direito a voto pertença a pessoas naturais residentes no Brasil ou a empresas constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no País”, algumas observações merecem destaque.

Em primeiro lugar, mencione-se que três dos quatro maiores Grupos Econômicos que prestam serviços de telecomunicações no Brasil não são originariamente brasileiros, uma vez que cada uma de suas matrizes, na verdade, são sediadas na Espanha, México e Itália. Claramente essas empresas adequaram-se juridicamente para a prestação dos serviços em território brasileiro, razão pela qual o Decreto em comento não tem como resultado limitação à atuação desses grupos internacionais no Brasil.

Limitações genéricas à composição de capital de uma empresa respaldam-se comumente em quesitos de segurança nacional; restrições de balanços de pagamentos; orientação político-econômica voltada para a autossuficiência nacional, entre outros determinantes. No que tange ao setor de telecomunicações, nenhum desses quesitos se destacam como sensíveis o suficiente para justificar a permanência do Decreto nº 2.617 no ordenamento jurídico brasileiro.

 Conforme exposto anteriormente, toda empresa prestadora de serviços de telecomunicações no Brasil responde perante as leis brasileiras e está sujeita à regulamentação da Anatel, o que implica que todos os procedimentos de segurança aplicáveis às empresas nacionais também o são para as estrangeiras.

Da infraestrutura

Por outro lado, o setor caracteriza-se pela necessidade de altos investimentos em infraestrutura física, a qual exige um longo período para a obtenção de retorno ao capital investido, implicando estabilidade das operações e planejamento de negócios de médio a longo prazo.

Ou seja, a empresa prestadora de serviços de telecomunicações, nacional ou estrangeira, tende a investir no Brasil tendo como balizador a expectativa de viabilidade econômica de seu modelo de negócio. Assim, uma vez estabelecida a entrada no mercado, a provisão do serviço tende a se manter ao longo do tempo, tendo os consumidores essa garantia pela sua própria natureza comercial.

O elo entre o capital estrangeiro e os investimentos em infraestrutura no Brasil dar-se-ia preponderantemente por meio de Investimento Estrangeiro Direto (IED).

Investimento Estrangeiro Direto é, num sentido mais amplo, a movimentação de capitais internacionais para propósitos específicos de investimento, quando empresas ou indivíduos no exterior criam ou adquirem operações em outro país. O IED engloba fusões e aquisições, construção de novas instalações, reinvestimento de lucros auferidos em operações no exterior e empréstimos intercompany (entre empresas do mesmo grupo econômico).

Segundo o Banco Mundial, entre os benefícios do IED estão os seguintes:

Adicionalmente, o investimento estrangeiro faz com que as empresas cresçam, nivela as economias de escala em mercados domésticos e promove resultados tais como: maior produtividade, rentabilidade, geração de riquezas e empregos. O IED também expõe as empresas nacionais a novas ideias e práticas, e pode ainda significar um aumento do fluxo de saída de exportações (fonte: http://www.apexbrasil.com.br/o-que-e-ied).

O IED em empresas brasileiras constitui-se em uma fonte considerável de divisas para o País, sendo que o fluxo de capitais destinados ao IED passou de um total de US$ 60 bilhões em 2018, para US$ 75 bilhões em 2019, representando um incremento de 26% de um ano para o outro (fonte: Banco Central do Brasil, Relatório Focus).

Da relação histórica entre questões macroeconômicas e regulação do capital estrangeiro

Países com potenciais problemas macroeconômicos ligados ao setor externo limitam a quantidade de divisas internacionais oferecida aos seus demandantes, principalmente empresas importadoras que desejam bens e produtos oriundos do exterior e sociedades estrangeiras em operação no país. O Brasil adotou essa estratégia por algumas décadas, principalmente em cenários de restrições no balanço de pagamentos.

O Decreto-Lei nº 9.025, de 27 de fevereiro de 1946, dispõe sobre as operações de câmbio, regulamenta o retorno de capitais estrangeiros e dá outras providências. De acordo com o art. 6º desta norma, “é assegurado o direito de retorno ao capital estrangeiro previamente registrado na Carteira de Câmbio do Banco do Brasil S.A., desde que a parcela anual de transferência não exceda de 20% do capital registrado”. Ademais, o art. 8º traça um limite para a remessa de juros, lucros e dividendos de 8% do capital registrado; e o art. 17 concede à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) a faculdade de dilatar os prazos de retorno do capital estrangeiro, sempre que determinadas condições o exigirem.

Ou seja, exigia-se um registro do capital estrangeiro e regulamentava-se um direito de retorno a este, como uma espécie de quarentena macro-financeira. À época, esta regulamentação atendia às autoridades e às empresas multinacionais, permitindo a integração da economia brasileira à mundial por meio de investimentos estrangeiros diretos.

Contudo, a regulamentação foi ficando mais rígida, principalmente pela reversão da situação favorável do balanço de pagamentos: o esgotamento das reservas cambiais levou ao Banco do Brasil discutir os balanços das firmas estrangeiras para acertar o valor cuja remessa era permitida e para conceder quotas semanais, quinzenais ou mensais para remessas, a taxas oficialmente fixadas.

Após certo tempo, veio o Decreto nº 30.363, de 3 de janeiro de 1952, com objetivos de dispor sobre o retorno de capital estrangeiro, em linha com o Decreto-Lei nº 9.025. Por mais que houvera regulamentação sobre, o capital estrangeiro era bem vindo, por gerarem novos investimentos no país e criarem empregos à população brasileira. Entretanto, de 1962 até o presente, foram criadas diversas restrições à entrada do capital estrangeiro em várias áreas de atividade, desde bens de informática até a exploração de petróleo.

Em 1953, o Decreto-Lei nº 9.025 já tinha sido desidratado quase por completo, até que a Lei nº 1.807, de 7 de janeiro de 1953, terminou por revogar os artigos 6, 7 e 8 do Decreto-Lei 9.025, indo em uma direção mais restritiva. De acordo com esta lei, apenas determinadas operações de câmbio seriam efetuadas por taxas fixadas pelo conselho da Sumoc, entre as quais investimentos de "especial interesse para a economia nacional". Ademais, as remessas de remuneração do capital estrangeiro passavam a depender das "possibilidades do balanço de pagamentos". Isto é, a viabilidade de negócios financiados por capital estrangeiro dependia da caracterização discricionária da importância do setor ao país, da situação das contas externas, assim como da prerrogativa de utilização de taxas de câmbio favoráveis, abarcadas pela lei em comento.

Com vistas a criar um clima favorável para os investimentos de capitais estrangeiros no país, uma flexibilização à Lei nº 1.807/1953 foi permitida aos investimentos estrangeiros: a possibilidade de importação de capital estrangeiro sem cobertura cambial. Em outras palavras, o investidor capitalizava sua empresa no Brasil com a importação de máquinas e equipamentos estrangeiros sem a necessidade de recorrer às divisas nacionais para o seu devido pagamento. Em termos contábeis, a transação resumia-se a incorporar o equipamento diretamente no ativo fixo da empresa, com uma operação de entrada e outra de saída de recursos de mesmo montante, não impactando o balanço de pagamentos. Essa licença foi regulamentada pela Instrução da Sumoc nº 113, de 17 de janeiro de 1955. 

Este instrumento foi bem sucedido. O Brasil recebeu expressivos investimentos diretos sob o guarda-chuva da Instrução nº 113. Entretanto, outra onda restritiva a capitais estrangeiros culminou no sancionamento da lei que viria a ser chamada de Lei da Remessa de Lucros, originada de uma discussão política vencida pela visão nacionalista, fundamentada em política econômica de restrição ao estrangeiro e fomento ao doméstico.

A lei aprovada nessa época e até hoje vigente dada a recepção pela Constituição Federal de 1988 é a Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962, que disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior; contando com modificações introduzidas por diversas leis e decretos-lei, da Lei nº 4.390, de 29 de agosto de 1964 até a Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017.

Novamente, concessões e flexibilizações seriam garantidas por meio da Lei nº 4.390 e pelo Decreto 55.762 de 1965, de modo que determinações polêmicas foram revistas e uma regulação conciliadora foi colocada em prática, desde então contando com certa estabilidade, pari passu com o recebimento de investimentos estrangeiros. O registro de capitais estrangeiros, sempre presente na regulação, era autorizativo, principalmente em circunstâncias sensíveis como na crise da dívida externa dos anos 80. Hoje ele é declaratório, sem qualquer necessidade de autorização prévia.

A partir de meados dos anos 90, principalmente após o Plano Real, o Brasil tem buscado adotar posturas liberalizantes condizentes com o processo de globalização econômica, procurando uma maior conexão de sua economia com o resto do mundo, sendo o setor de telecomunicações um dos que lideram esse movimento, a contar pelo processo de privatização do setor, pela contínua integração com fornecedores estrangeiros e pela recepção de grandes prestadoras a nível mundial.

Contraditoriamente, observa-se que, ao longo da década de 90, restrições ao capital estrangeiro se concentraram na entrada, em contraste com enfoque histórico na saída, sendo o Decreto 2.617 um exemplo. Parte da motivação para tal se resume em questões cambiais, de modo a evitar grandes oscilações na direção de uma valorização cambial, algo impensável tendo como base a experiência brasileira até meados da década de 80.

Hoje em dia o Brasil superou seus problemas de balanço de pagamentos, possuindo aproximadamente 368 bilhões de dólares americanos em reservas cambiais, de acordo com o Banco Central. É o quarto país do mundo com maior recepção de investimento estrangeiro direto (atrás de Alemanha, Hong Kong e Singapura, de acordo com o Banco Mundial), contando com câmbio flutuante e intervenções cambiais limitadas a controlar a volatilidade da taxa de câmbio ou a expurgar os efeitos indiretos na inflação. Portanto, no que se refere ao critério macroeconômico, a revogação do Decreto nº 2.617 não provocaria qualquer problema à economia brasileira.

Da política econômica, competição e privatização

Outra questão que poderia fundamentar a existência do presente Decreto seria uma orientação de política econômica voltada ao fomento de empresas nacionais. Entretanto, quando se olha para o mercado de telefonia móvel no Brasil, tem-se que três companhias multinacionais possuem 80% do market-share. Ou seja, elas se adequaram à legislação interna para a operação no país. Por este ponto de vista, se o objetivo era garantir às empresas de origem brasileira parcela dos mercados de varejo em telecomunicações, tal propósito não fora alcançado.

É impossível dissociar este tema com competição, dada a sua importância no sentido de imprimir dinâmica ao setor. Ademais, é difícil dissociá-lo da lógica das privatizações do setor de telecomunicações no Brasil, que cumpriu por mudar completamente o modo de funcionamento do setor de telecomunicações, sendo imprescindível a atuação de companhias estrangeiras.

O programa de privatização do setor de telecomunicações no Brasil exibiu magnitude sem precedente nos mercados emergentes. Devido a limitação de capital nacional para o financiamento desses investimentos, um fator preponderante na estratégia de privatização fundamentou-se na atração de parceiros estratégicos internacionais capazes de promover os investimentos necessários à modernização setorial, conforme exposto na Exposição de Motivos da Lei Geral de Telecomunicações, in verbis

Devido à limitação de capital nacional para o financiamento desses investimentos, observa-se que um fator importante para o sucesso de qualquer estratégia de privatização poderá ser a atração de parceiros estratégicos, com conhecimento operacional e tecnológico de alta qualidade, capazes de promover substanciais investimentos de capital de longo prazo e de reestruturar as operações atuais, de modo a viabilizar a ampliação da disponibilidade e da qualidade dos serviços prestados. 

(...) 

Por fim, à Agência caberá adotar todas as medidas que forem necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações. Exercendo esse conjunto de competências, a Agência [Anatel] terá plenas condições de regular adequadamente o setor de telecomunicações e, fazendo-o de forma competente e transparente, construir a necessária credibilidade para estimular os investimentos privados, nacionais e estrangeiros, que viabilizem o atendimento às necessidades da sociedade brasileira. 

Nesse sentido, o Decreto nº 2.617/1998, objetivou criar condições à participação desse capital estrangeiro na estrutura societária das empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, buscando garantir, ainda, que seu centro decisório, consubstanciado no primeiro nível da estrutura de controle (holding controladora direta), permanecesse em território nacional. 

Naquele momento, junho de 1998, a Anatel ainda não estava plenamente operacionalizada, especialmente, para o acompanhamento de questões pertinentes ao controle societário das prestadoras recém desestatizadas, uma vez que o próprio Regulamento para Apuração de Controle e de Transferência de Controle em Empresas Prestadoras de Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução nº 101, data de 4 de fevereiro de 1999, ainda seria editado. 

Após a edição desse Regulamento, a Anatel estava juridicamente amparada para, no exercício das competências legais em matéria de controle, prevenção, repressão das infrações da ordem econômica no setor de telecomunicações, realizar as apurações de controle e de transferência de controle que, eventualmente, sejam objeto de vedação, restrição, limites ou condicionamentos. 

Por outro lado, a Resolução nº 101/1999 trouxe para o mercado de telecomunicações brasileiro a segurança jurídica necessária às prestadoras, aos seus controladores, demais investidores, bem como ao próprio órgão regulador, garantindo ao final estabilidade ao recente processo de privatização e, por conseguinte, aos seus consumidores.

Desde a sua edição, a Resolução nº 101/1999 mostrou-se como um instrumento jurídico consistente e de grande importância para o setor de telecomunicações, uma vez que, no controle das estruturas dos grupos econômicos, a Anatel foi pioneira na imposição do conhecimento prévio das operações de transferência de controle, permitindo a sua atuação preventiva, para fins de evitar fraude às vedações legais e regulamentares à propriedade cruzada e à concentração econômica e de resguardar a livre concorrência e o direito dos consumidores de serviços de telecomunicações. 

Passados mais de vinte anos da sua publicação, é notória a expertise da Agência no controle, prevenção e repressão das infrações da ordem econômica e os seus reflexos sobre o ambiente competitivo setorial são patentes, na medida em que se observa a existência de níveis razoáveis de contestabilidade entre os players atuantes e, por conseguinte, uma melhor oferta de serviços aos consumidores finais. 

Com efeito, a Resolução nº 101/1999 segue em plena utilização, não tendo sofrido reparos em seu texto desde a sua edição, e continua servindo de modelo, inclusive, para outros setores de infraestrutura. 

Em contrapartida, o papel do órgão regulador no fomento à livre, ampla e justa competição no mercado de telecomunicações brasileiro ainda encontra óbices à sua atuação diante da existência de disposições legais que impedem o avanço dos investimentos nesse setor, como se observa na restrição imposta à participação de capital estrangeiro no País prevista na segunda parte do art. 1º do Decreto nº 2.671/1998. 

A limitação prescrita de que a maioria das cotas ou ações com direito a voto deve pertencer a pessoas naturais residentes no Brasil ou a empresas constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no País desempenhou papel fundamental nos anos iniciais após a privatização do setor de telecomunicações, garantindo maior segurança ao poder concedente quanto à participação do capital estrangeiro.

Contudo, nos dias atuais, reconhece-se que o setor de telecomunicações está assentado em bases sólidas, dotado de arcabouço regulatório bem definido, órgão regulador experiente e players mais qualificados para o atendimento dos consumidores com melhores padrões de qualidade.

Do novo cenário para o setor de telecomunicações

O setor de telecomunicações tem se caracterizado nos últimos anos como um dos mais dinâmicos em termos econômicos e tecnológicos, sendo regido por mudanças de produtos, inovações tecnológicas e contestações de mercado, fatores esses que acontecem pioneiramente em países desenvolvidos e que posteriormente chegam em terras brasileiras.

Pode-se citar diversos movimentos relativamente recentes que lograram êxito a ambos, empresas e consumidores brasileiros, tais como o progresso de tecnologias de redes móveis; a evolução de funcionalidades de aparelhos celulares, aliada a planos de serviços convenientes a essas novas aplicações; o surgimento de serviços Over The Top, que dão uma nova experiência ao usuário; o desenvolvimento da Internet das Coisas, que deve gerar efeitos significativos não limitados ao setor aqui em destaque.

Discriminar o capital com base em sua residência em um mundo cada vez mais integrado e dependente de soluções universais não parece contribuir para colocar o Brasil em uma posição que o permitirá encontrar suas respostas aos desafios do século XXI.

Compete observar que o momento atual demanda um maior afluxo de investimentos, tendo em vista os desafios que se aproximam para expansão de novos serviços e tecnologias no setor de telecomunicações, tais como novos mercados digitais, implantação do protocolo 5G, entre outros, impondo ao país regras mais simples e estáveis para participação do capital estrangeiro.

Dessa forma, a revisão no disposto no Decreto nº 2.617/1998 poderá trazer mais clareza quanto à eventual participação direta de acionistas estrangeiros e, sobretudo, fundos de investimentos na condição de acionistas ou cotistas em empresas brasileiras de telecomunicações, em especial no momento em que se farão necessários vultosos investimentos na implantação das redes móveis de 5ª geração (5G). 

O exemplo da flexibilização da participação de capital estrangeiro no setor aéreo

Complementarmente, é oportuno mencionar a recente modificação nas restrições à participação do capital estrangeiro em empresas aéreas brasileiras, que se constitui em outro setor de infraestrutura regulado sensível a investimentos externos, tal como o de telecomunicações,  promovida por meio da Lei nº 13.842[3], de 17 de junho de 2019, que alterou a Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, Código Brasileiro de Aeronáutica.

A título de esclarecimento, a redação original do art. 181, que versava sobre a estrutura de capital no setor aeronáutico, encontra-se abaixo transcrita:

Art. 181. A concessão somente será dada à pessoa jurídica brasileira que tiver:

 

I - sede no Brasil;

II - pelo menos 4/5 (quatro quintos) do capital com direito a voto, pertencente a brasileiros, prevalecendo essa limitação nos eventuais aumentos do capital social;

III - direção confiada exclusivamente a brasileiros.

 

§ 1° As ações com direito a voto deverão ser nominativas se se tratar de empresa constituída sob a forma de sociedade anônima, cujos estatutos deverão conter expressa proibição de conversão das ações preferenciais sem direito a voto em ações com direito a voto.

§ 2° Pode ser admitida a emissão de ações preferenciais até o limite de 2/3 (dois terços) do total das ações emitidas, não prevalecendo as restrições não previstas neste Código.

§ 3° A transferência a estrangeiro das ações com direito a voto, que estejam incluídas na margem de 1/5 (um quinto) do capital a que se refere o item II deste artigo, depende de aprovação da autoridade aeronáutica.

§ 4° Desde que a soma final de ações em poder de estrangeiros não ultrapasse o limite de 1/5 (um quinto) do capital, poderão as pessoas estrangeiras, naturais ou jurídicas, adquirir ações do aumento de capital.

A Lei nº 13.842/2019 revogou o Código Brasileiro de Aeronáutica e permitiu a abertura do mercado aeroportuário, exigindo-se para esse mercado, tão somente, que a empresa de aviação seja constituída sob as leis brasileiras, com sede e administração no Brasil, não restando, portanto, nenhuma amarra à participação do capital estrangeiro, verbis:

Art. 1º. A Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 181.  A concessão ou a autorização somente será concedida a pessoa jurídica constituída sob as leis brasileiras, com sede e administração no País.”

De fato, a nova estrutura de capital do setor aeronáutico, estabelecida pela Lei nº 13.842/2019 (originada da Medida Provisória nº 863/2018), incentivará uma maior entrada de capitais exteriores, objetivando o investimento direto em empresas brasileiras de aviação, promovendo assim um maior desenvolvimento setorial. 

Da normatização vigente 

Importante frisar que flexibilizar o controle de capitais estrangeiros não quer dizer que o poder público não possua a prerrogativa de regulação setorial quando o fizer oportuno nem que as autoridades não possuam jurisdição para tomar as decisões necessárias às circunstâncias. Isso, pois, conforme já mencionado, a operação no Brasil ainda deverá ter como pré-requisito a constituição de empresa segundo as leis brasileiras, com sede e administração no País.

Não obstante, cumpre destacar que, do ponto de vista prático, a legislação federal e a regulamentação do Banco Central em vigor já flexibilizam os pontos pelos quais o Decreto nº 2.617 se destaca, que se refere à restrição de composição de capital estrangeiro.

A Circular nº 3.491/2010 do Banco Central do Brasil trata do registro do investimento estrangeiro direto no País, adotando as seguintes definições:

a) investidor não residente: pessoa física, pessoa jurídica ou entidade de investimento coletivo que, tendo residência, domicílio ou sede no exterior, detém ou intenta deter participação no capital social de empresa no País;

b) empresa receptora: pessoa jurídica empresária constituída sob as leis brasileiras e com domicílio e administração no País, em cujo capital social o investidor não residente detém ou intenta deter participação, bem como filial de pessoa jurídica empresária estrangeira autorizada a funcionar no Brasil.

De acordo com esta Circular, são responsáveis pelo registro a empresa receptora e os representantes, no País do investidor não residente, indicados quando do registro. Deve ser registrado como investimento estrangeiro direto a participação de investidor não residente no capital social de empresa receptora, integralizada ou adquirida na forma da legislação em vigor, e o capital destacado de empresa estrangeira autorizada a operar no Brasil.

Ademais, a própria Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades por Ações), que historicamente ganhou o status de lei geral do direito societário, possui uma seção específica sobre o modo de representação do investidor residente ou domiciliado no estrangeiro:

SEÇÃO V

Representação de Acionista Residente ou Domiciliado no Exterior

Art. 119. O acionista residente ou domiciliado no exterior deverá manter, no País, representante com poderes para receber citação em ações contra ele, propostas com fundamento nos preceitos desta Lei.

Parágrafo único. O exercício, no Brasil, de qualquer dos direitos de acionista, confere ao mandatário ou representante legal qualidade para receber citação judicial.

Desta forma, para participar de sociedade anônima brasileira, exige-se do estrangeiro a apresentação de instrumento de procuração específica, outorgada a representante no Brasil, com os poderes do mandatário discriminados, inclusive para receber citação ou representar em juízo ou fora dele, bem como os documentos societários da sociedade representada. A procuração ou qualquer outro documento em língua estrangeira deve estar consularizado, traduzido por tradutor juramentando, e registrado em cartório.

Ou seja, existem legislação e normas infralegais em vigor que regulamentam o capital estrangeiro na economia brasileira como um todo, de tal modo que a limitação imposta à composição do capital das prestadoras outorgadas a explorar serviços de telecomunicações de interesse coletivo parece uma medida desproporcional, tendo em vista não apenas todos os argumentos acima apresentados, mas também a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019), a qual caracteriza abuso de poder regulatório "redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado".

CAPÍTULO III

DAS GARANTIAS DE LIVRE INICIATIVA

Art. 4º  É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:

I - criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes;

II - redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado;

III - exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado;

IV - redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco;

V - aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios;

VI - criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros;

VII - introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas;

Destarte, observa-se que a Lei de Liberdade Econômica instituiu um mecanismo de mitigação de eventual abuso do poder regulatório da Administração Pública ao estabelecer que é dever da administração pública não criar óbices à participação de novos competidores nacionais ou estrangeiros, com vistas a garantir a livre iniciativa e o livre mercado e, por conseguinte, a promoção da competitividade e do desenvolvimento econômico, conforme determina o art. 170 da Constituição Federal do Brasil. 

Dito isso, constata-se que o Decreto nº 2.617/1998 apresenta-se anacrônico, em descompasso com o atual momento econômico e regulatório, gerando dúvidas a potenciais investidores externos, sobretudo àqueles agentes econômicos que busquem o investimento direto em empresas do setor de telecomunicações no Brasil. Desta forma, tal Decreto, na visão desta área técnica da Anatel, pode ser integralmente revogado.

Por fim, ressaltamos que algumas informações inseridas neste Informe se baseiam em trechos do livro A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco; e do artigo de Aryane Soares Lustosa Alves, sobre  Regulamentação Jurídica no Brasil dos Investimentos Estrangeiros e sua Implicação nas Sociedades Empresariais.

CONCLUSÃO

Infere-se que questões de ordem técnica, jurídica e econômica convergem para a conclusão de que a limitação de composição de capital se mostra prescindível, razão pela qual se entende conveniente defender a revogação do Decreto nº 2.617, de 5 de junho de 1998.


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Documento assinado eletronicamente por Nilo Pasquali, Superintendente de Planejamento e Regulamentação, em 01/04/2020, às 18:04, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Documento assinado eletronicamente por Abraão Balbino e Silva, Superintendente de Competição, em 01/04/2020, às 19:29, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Documento assinado eletronicamente por Paula Fontelles do Valle, Gerente de Acompanhamento Societário e da Ordem Econômica, em 01/04/2020, às 21:29, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Documento assinado eletronicamente por Luis Claudio Santana Santoro, Especialista em Regulação, em 01/04/2020, às 21:34, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Documento assinado eletronicamente por Felipe Roberto de Lima, Gerente de Regulamentação, em 01/04/2020, às 21:57, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Documento assinado eletronicamente por Fernando de Faria Siqueira, Especialista em Regulação, em 01/04/2020, às 22:01, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 23, inciso II, da Portaria nº 912/2017 da Anatel.


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Referência: Processo nº 01250.009444/2020-83 SEI nº 5351222